A cultura de escassez em que muitos brasileiros (inclusive eu) cresceram geralmente reflete num padrão de consumo de quantidade sobre qualidade. E sabemos que mudar um hábito ou padrão de consumo é extremamente difícil. O café, assim como muitas outras bebidas, oferece um caminho para começar essa mudança. Priorizar o ritual, a calmaria, o momento — ao invés da quantidade. Em vez de mais xícaras por dia, a melhor xícara possível em momentos especiais.
A primeira vez que eu refleti sobre qualidade foi com uma garrafa mais cara de whisky. Comprada em 2014 e, em vez de "guardar para uma ocasião especial" que nunca chegava (e nunca chega!), decidi fazer diferente. Tomava uma dose a cada conquista pequena: um projeto entregue, um domingo chuvoso perfeito, uma conversa interessante, ouvindo música. A garrafa durou quase uma década. Não pelo simples motivo de economizar, mas porque cada gole tinha significado. Cafés acima da média podem ser assim também — congelado em porções, para momentos que importam.
FILTRADOS FILTRADOS FILTRADOS
Priorizo filtrados a espresso por razões práticas. Espresso é muitas vezes injusto: 2 segundos ou 2 graus fazem a diferença entre perfeição e desastre. Já o filtrado perdoa mais, revelando nuances diferentes em cada gole. Um café excepcional em 1:15 pode surpreender completamente em 1:20 — mais delicado, mais chá que café, permitindo saborear por mais tempo a mesma quantidade de grãos.
O que realmente importa?
No mundo do café especial, pontuação muitas vezes vira obsessão e distrai. 84 pontos, 90 pontos — números que vendem café mas não necessariamente traduzem prazer na xícara. A melhor pontuação é aquele gosto de "quero mais" no momento certo. Pode ser um 82 pontos, extremamente bem torrado, que combina perfeitamente com seu momento ou um 87 pontos guardado para quando você realmente sabe como aproveitar todo o potencial de um café de maior qualidade.
Estratégias práticas que funcionam
Documente sua jornada. Tenha um caderno pequeno para receitas, experimentos, alterações mínimas. Como você se sentiu tomando aquele café? O que mudou de ontem para hoje?
Congele sem culpa. Achou um café acima da média? Congele metade. Pode comprar mais? Compre e congele. Não espere encontrar outro café especial — ele pode demorar meses para aparecer.
Experimente proporções extremas. Acostume seu paladar com mais água. Use a diluição a seu favor para descobrir nuances escondidas.
Abrace suas limitações. Não tem o moedor dos seu sonhos? Prensa francesa em vez de V60? Ótimo. Domine o que você tem. Limitações forçam criatividade.
Celebre o ritual
O convite final é simples: aprecie mais o ritual de fazer café. Não o café perfeito do futuro com equipamento dos sonhos, mas o café possível de hoje, com o que você tem em mãos.
Cada xícara é uma chance de parar, observar, ajustar. É nessa prática diária, sem pressa de chegar a lugar nenhum, que descobrimos que qualidade nunca foi sobre ter mais — sempre foi sobre elevar nossa percepção.
